O narcisismo das pequenas diferenças


Sinceramente não sei se estou vivendo um tempo onde a intolerância ganhou espaço e poder como nunca antes, ou simplesmente agora que estou percebendo mais de perto os efeitos trágicos dela.

O fato é que por toda parte vejo o que não vi nos meus primeiros 30 anos de vida. As redes sociais se mostraram verdadeiros campos de ódio, batalhas ideológicas, preconceitos e discriminações diversas. Mas, infelizmente esses crimes não ficaram só nas redes virtuais, ganharam vida e corpo, e alcançam muitos com violência e morte.

É como escreveu Cristovam Buarque em sua rede social: “Primeiro, a gente substitui argumentos por xingamentos; depois xingamentos por agressão verbal; depois agressão verbal por um tapas e murros; logo estes são substituídos por chutes e pancadas com paus; aí alguém puxa um revólver e sem propósito mata um adversário; e em breve o país se joga em guerra civil política, como aconteceu em tantas outras partes, apesar dos alertas rejeitados processem considerados gestos de quem está encima do muro. Em geral, são estes as primeiras vítimas, porque são agredidos pelos dois lados”

Eu poderia listar um número imenso de atitudes assim, mas não caberia, e seria difícil escolher qual entre tantas ações de preconceito, ódio, fascismo e crime deveria listas. E não estou me referindo a coisas que vejo em jornais, mas no meu cotidiano. Refiro-me como vejo a classe média pensar e tratar os pobres, os negros, as minorias, os marginalizados. Refiro-me a ideologia fascista, machista, homofóbica ensinada por alguns professores em sala de aula. Refiro-me como a polícia trata os moradores de minha comunidade. Refiro-me aos crimes sofridos por colegas, amigos e conhecidos pelo simples fato de serem pobres, pretos, mulheres e gays, ou por pensar diferente, pois o que está mais claro hoje é que pensar diferente tem virado o pior erro de alguns que por essa razão serão punidos por aqueles que não suportam a diferença.

E de onde surge essa intolerância? Qual a origem dela? Aqui entra o termo que dá título a esse texto – o narcisismo das pequenas diferenças. 

Esse termo foi usado por Freud para refletir sobre o par de opostos tolerância/intolerância no plano individual e coletivo.

Em seus escritos Freud analisa o esforço colossal da criança para não perceber a diferença trazida pela mulher (geralmente, a mulher que se ocupa dos cuidados com a criança, mãe ou babá). Tal diferença é a ausência do falo na mulher que contrasta com a fantasia infantil de um monismo fálico que todos humanos possuem o falo, com suas variações, por exemplo, naqueles que não possuem irá crescer. Tudo se passa como se o reconhecimento da diferença se confundisse com o reconhecimento da castração. Pois se todos possuem o falo não só não há castração, como o próprio complexo não está colocado.

A diferença trazida pela anatomia feminina (verdadeiro signo da alteridade) coloca em xeque a projeção corporal narcísica. Já não é mais possível sustentar a fantasia de que todos os corpos são dotados de falo.

O que significa que já não é mais possível ter uma projeção plena do próprio corpo e do corpo do outro, ou falta algo em meu corpo (caso da menina), ou pode ser que eu venha a perder algo (caso do menino). Em suma, o reconhecimento da diferença sexual abala fortemente os contornos da imagem corporal um dos nomes do narcisismo.

E quem foi Narciso?

Segundo Ovídio, Narciso era um rapaz plenamente dotado de beleza. Seus pais eram o deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope. Dias antes de seu nascimento, seus pais resolveram consultar o oráculo Tirésias para saber qual seria o destino do menino. E a revelação do oráculo foi que ele teria uma longa vida, desde que nunca visse seu próprio rosto.

Narciso cresceu, e se transformou um jovem bonito de Boécia, que despertava amor tanto em homens e mulheres, mas era muito orgulhoso e ninguém conseguia quebrar a sua arrogância. Até as ninfas se apaixonaram por ele, incluindo uma chamada Eco que o amava incondicionalmente, mas o rapaz a menosprezava. As moças desprezadas pediram aos deuses para vingá-las. Para dar uma lição ao rapaz frívolo, a deusa Némesis, o condenou a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na lagoa de Eco. Encantado pela sua própria beleza, Narciso deitou-se no banco do rio e definhou, olhando-se na água e se embelezando. Depois da sua morte, Afrodite o transformou numa flor, narciso.

Até em sua morte, ele tentava ver nas águas do Estige as feições pelas quais se apaixonara.

Do mito se compreende o uso do termo por Freud. Como se dissesse: tudo que de mim difere me ameaça. O reconhecimento do diferente se opõe ao narcisismo, e para que o outro seja reconhecido como tal, há de ocorrer necessariamente uma mudança psíquica. Nunca há um acesso à alteridade que não passe por alterações no psiquismo.

Uma outra história que pode nos ajudar mais ainda na compreensão do nosso narcisismo é o conto dos porcos espinhos escrito por Schopenhauer.

“Em um gelado dia de inverno, os membros da sociedade de porcos espinhos se juntaram para obter calor e não morrer de frio. Mas logo sentiram os espinhos dos outros e tiveram de tomar distância. Quando a necessidade de se aquecerem os fez voltarem a juntar-se se repetiu aquele segundo mal, e assim se viram levados e trazidos entre ambas as desgraças, até que encontraram um distanciamento moderado que lhes permitia passar o melhor possível. (SCHOPENHAUER, 1851/2009, p. 665)”

 

Há, logo de imediato, dois impossíveis na parábola: o frio e o espinho. Dois impossíveis opostos, por sinal; pois o frio aparece como impossibilidade de sobreviver sozinho, ao passo que o espinho representa a impossibilidade de viver junto.

Conforme o testemunho da psicanálise, quase toda relação sentimental íntima e prolongada entre duas pessoas, matrimônio, amizade, o vínculo entre pais e filhos contém um sedimento de afetos de aversão e hostilidade, que apenas devido ao recalque não é percebido. Isso é mais transparente nas querelas entre sócios de uma firma, por exemplo, ou nas queixas de um subordinado contra o superior. (FREUD, 1921/2011, p. 56)

Toda vez que duas famílias se unem por casamento, cada uma delas se acha melhor ou mais nobre que a outra. Havendo duas cidades vizinhas, cada uma se torna a maldosa concorrente da outra; cada pequenino cantão olha com desdém para o outro. Etnias bastante aparentadas se repelem, o alemão do Sul não tolera o alemão do Norte, o inglês diz cobras e lagartos do escocês, o espanhol despreza o português. Já não nos surpreende que diferenças maiores resultem numa aversão difícil de superar, como a do gaulês pelo germano, do ariano pelo semita, do branco pelo homem de cor. (FREUD, 1921/2011, p. 56, 57)

No âmbito social criamos mecanismos para fazer sumir os espinhos, mas na verdade somem os espinhos interpessoais, para retornarem mais pontiagudos nas relações intergrupais. “Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outros onde exteriorize a agressividade” (FREUD).

O melhor exemplo dessa transição é a postura antissemita dos nazistas. O ódio aos judeus tem como elementos psíquicos pequenas diferenças. Percebam que neste texto, não decidi falar sobre as questões sociológicas que é evidente que são tão determinantes quanto, mas aqui o foco é a ordem psíquica do fenômeno da intolerância.

No caso do ódio aos judeus as pequenas diferenças que ameaçam a onipotência dos nazistas estão claras em discursos como estes:

“o Judeu não é simplesmente uma raça ruim, um tipo defeituoso: ele é o antítipo, o bastardo por excelência. O Judeu não possui forma ou figura da alma (Seelengestalt). [...] O Judeu não é o antípoda do germânico, mas sua contradição, o que sem dúvida quer dizer que não se trata de um tipo oposto, mas da ausência mesmo de tipo (Lacoue-Labarthe & Nancy, 2002: 53).”

“O judeu habita em nós; porém é mais fácil combatê-lo sob sua forma corporal do que sob a forma de um demônio invisível” (Fuks, 2000: 92), confidenciou certa vez Adolph Hitler a Herman Rauching

 

“Resta ainda examinar as diferenças irredutíveis do judaísmo que serviram de base para identificar os judeus como “inimigo objetivo” do Nacional-Socialismo, nos termos de Hannah Arendt (1979). Desde o final do século XIX, a imagem do pênis circunciso, considerado como alterado, danificado ou incompleto, esteve no centro da definição de judeu. Fantasias giravam em torno da ideia de que a circuncisão era um processo de feminização do varão judeu, deixando seu órgão sexual degenerado e altamente comprometido com as doenças sexualmente transmissíveis. Mas este pânico da feminização que atingia a cultura européia recaía, também, sobre uma outra figura de alteridade, a feminilidade. Em Mein Kampf, o horror à feminização tornou-se a retórica do programa político: “a mulher introduz o pecado no mundo, sendo, então, a principal causa da poluição do sangue nórdico”, escreveu Hitler (Le Rider, 1992: 292).”

A reflexão sobre a intolerância à mulher e ao judeu ocupa um lugar especial no pensamento psicanalítico. Freud estabeleceu uma homologia entre a impressão inquietante causada pelo sexo da mulher e a vivência sinistra do homem diante da circuncisão. Ambas provocam um horror determinado, o horror à castração. E quando, em psicanálise, fala-se em horror à castração está se falando sobre a angústia que a diferença causa. É esta angústia que, na perspectiva de “Moisés e o monoteísmo”, Freud ([1939] 1976) afirma ser a raiz comum entre o antifeminismo e o antissemitismo. Porque lembra a ausência ou a privação e desperta estranheza, a circuncisão faz com que, diante dela, o incircunciso se depare com a falência do ideal de uma virilidade sem perdas.

E aqui está a origem psíquica da intolerância. E a solução visto tratar-se de uma condição humana qual é?  

A solução não está na homogeneização dos homens, ou na negação da alteridade, ou na anulação das diferenças. Nem apagar as diferenças nem generalizar as semelhanças.

Nem mesmo seria a mera tolerância a solução, pois como Goethe alerta para o fato de que a tolerância seria apenas uma atitude transitória que deve levar ao reconhecimento do outro. “Tolerar é injurioso”, dizia o poeta (Goethe, citado por Wismann, 2000: 100). A ideia de reconhecimento do outro, no que força o pensamento a absorver o entendimento da alteridade, obriga a tomada de uma posição ética capaz de fazer frente à violência do racismo, da xenofobia e do sexismo e outras formas hodiernas da intolerância do mesmo.

Ou nas palavras de Saramago, “Eu sou contra a tolerância, porque ela não basta. Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente ainda é pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro. Sobre a intolerância já fizemos muitas reflexões. A intolerância é péssima, mas a tolerância não é tão boa quanto parece. Deveríamos criar uma relação entre as pessoas da qual estivessem excluídas a tolerância e a intolerância.
José Saramago, in 'Globo (2003);’

 

 

Podemos, então, ousar definir psicanaliticamente a postura adequada como o ato de:

a) admitir nossa própria intolerância frente ao estranho;

b) aceitar-se estrangeiro para si mesmo e pagar o preço da própria singularidade;

c) saber ocupar o lugar de estrangeiro para o outro que nos vê como encarnação da ameaça de morte e como portador da mais radical ajuda;

d) reconhecer e acolher o inesperado, o de fora, o estrangeiro, o que escapa ao espelho, o para além do idêntico, sobretudo sem pretensões ao proselitismo;

e) saber que a tolerância diante do intolerável – o assassinato do outro – termina sempre em catástrofe (Fuks, 2006)

E para quem não considera que falei de Evangelho, leiam Mateus capítulos 5 e 18; Lucas capítulo 18; João capitulo 3.

Ivo Fernandes

01 de janeiro de 16


PS – O texto acima tem 60% de textos de outras fontes, sendo por mim apenas organizados. Seguem os links dos textos:


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